A prática de litigância simulada (sham litigation) configura ato ilícito de abuso do direito de ação, podendo gerar indenização por danos morais e materiais
O que é o sham litigation?
“Prática conhecida nos Estados Unidos, a expressão Sham Litigation pode ser compreendida como ‘litigância simulada’. Trata-se de ação ou conjunto de ações promovidas junto ao Poder Judiciário, que não possuem embasamento sólido, fundamentado e potencialidade de sucesso, com o objetivo central e disfarçado de prejudicar algum concorrente direto do impetrante, causando-lhe danos e dificuldades de ordem financeira, estrutural e reputacional.”
(CORRÊA, Rogério. Você sabe o que é Sham Litigation? Disponível em: https://sollicita.com.br/Noticia/?p_idNoticia=13665&n=voc%C3%AA-sabe-o-que-%C3%A9-sham-litigation? Acesso em 04/12/2019)
É no direito anglo-saxão, mais especificamente nos precedentes formados nos Estados Unidos da América, que encontramos fundamentos sólidos para se coibir o abusivo exercício do direito de peticionar e de demandar. Trata-se da proibição daquilo que se convencionou chamar de sham litigation.
Na jurisprudência da Suprema Corte norte-americana, podemos encontrar precedentes dizendo que se a parte ingressa com inúmeros processos infundados e repetitivos, isso é um forte indício de abuso de direito, razão pela qual essa conduta não está albergada pela imunidade constitucional ao direito de peticionar (California Motor Transport Co. v. Trucking Unlimited, 404 U.S. 508, 1972).
Vale ressaltar que a doutrina da sham litigation se formou e consolidou com mais força no âmbito do direito concorrencial. A despeito disso, o raciocínio ali construído pode ser utilizado para se reconhecer e se reprimir também o abuso do direito de ação.
Como essa tese foi aplicada no Brasil?
Imagine a seguinte situação hipotética:
João e Pedro disputam, há cerca de 39 anos, uma grande Fazenda.
Nesse período, Pedro já propôs quase 10 ações judiciais contra João questionando a posse e propriedade do imóvel.
Todas as ações foram julgadas improcedentes e restou demonstrado que as demandas eram desprovidas de fundamentação idônea.
Depois disso, João ajuizou ação de reparação de danos materiais e morais contra Pedro, alegando que o réu praticou contra ele “atos de assédio processual” que teriam, por consequência, privado o autor, por décadas, de usar, dispor e fruir da propriedade familiar de que é herdeiro.
O pedido de João encontra amparo no ordenamento jurídico? É possível, em tese, reconhecer a prática de ato ilícito em um caso semelhante a esse?
SIM. O abuso do direito de ação ou do direito de defesa pode configurar o chamado “assédio processual”, configurando ato ilícito.
Abuso de direito.
A figura do abuso de direito é mais conhecida e estudada no Brasil sob a perspectiva do direito material e, sobretudo, no âmbito do direito privado. O instituto é definido pelo art. 187 do Código Civil:
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Vale ressaltar, no entanto, que, embora não seja da tradição do direito processual civil brasileiro, é admissível o reconhecimento da existência do ato ilícito de abuso processual, tais como o abuso do direito fundamental de ação ou de defesa, não apenas em hipóteses previamente tipificadas na legislação, mas também quando configurada a má utilização dos direitos fundamentais processuais.
Nem todo abuso do direito de ação está tipificado nos arts. 77 a 81 do CPC/2015
Quando se fala em punição por ato abusivo no processo judicial, imediatamente se pensa nos arts. 77 a 81 do CPC/2015, que tratam sobre os deveres e as responsabilidades das partes por dano processual.
Ocorre que não se pode afirmar que todas as descomposturas, chicanas e tramoias processuais estão apenas ali elencadas.
Abuso do direito de ação é excepcional
É importante, ressaltar, contudo, que o reconhecimento do eventual abuso do direito ação deve ser sempre excepcional. Isso porque o acesso à justiça é um direito fundamental intimamente ligado ao Estado Democrático de Direito.
Logo, esse abuso deve ser reconhecido apenas quando isso estiver caracterizado estreme de dúvidas, ou seja, de forma muito explícita, sem contradições.
Em suma:
O ajuizamento de sucessivas ações judiciais, desprovidas de fundamentação idônea e intentadas com propósito doloso, pode configurar ato ilícito de abuso do direito de ação ou de defesa, o denominado assédio processual.
STJ. 3ª Turma. REsp 1.817.845-MS, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Rel. Acd. Min. Nancy Andrighi, julgado em 10/10/2019 (Info 658).