Coronavírus – ESTADO DE CALAMIDADE E RESTRIÇÕES AO DIREITO DE LOCOMOÇÃO

(I) ANÁLISE CONSTITUCIONAL CONCERNENTE À RESTRIÇÃO DA LIBERDADE DE LOCOMOÇÃO DA POPULAÇÃO EM GERAL.

(II) ANÁLISE CONSTITUCIONAL CONCERNENTE À DECRETAÇÃO DO ESTADO DE CALAMIDADE PÚBLICA.

1 – RESTRIÇÃO À LIBERDADE DE LOCOMOÇÃO.

      Em prol da defesa da saúde, a Constituição Federal de 1988 permite que os Municípios, Estados, Distrito Federal e a União criem regras que limitem a liberdade de locomoção da população em geral.

Nessa hipótese, a competência legislativa será concorrente entre União, Estados e Distrito Federal. Vale anotar que competência concorrente é aquela que pode ser exercida por mais de um ente federativo. Os Municípios, apesar de não estarem previstos no caput do artigo 24 da CRFB/88, poderão suplementar a legislação federal e a estadual no que couber, consoante dispõe o artigo 30, II da Carta Magna.

     Assim, podemos citar como fundamento constitucional para a atuação concorrente dos entes políticos, repise-se, no que concerne à defesa da saúde e, consequentemente, de medidas necessárias à consecução deste fim (restrição da locomoção com vistas a impedir aglomerações, por exemplo), o artigo 24, inciso XII, da CRFB/88, in verbis:

Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

(omissis)

XII – previdência social, proteção e defesa da saúde;

(grifos nossos). 

Ainda sobre a competência municipal, vale mencionar que o artigo 18 da CRFB/88 confere autonomia política ao Município, senão vejamos:

 Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.

(grifos nossos).

     Outrossim, oportuno destacar que o artigo 30, VII da Carta Cidadã dispõe que aos Municípios compete prestar, com cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população. 

     Fica claro, portanto, a possibilidade de adoção de protocolos – no tocante à restrição do direito de locomoção – por parte de todos os entes federativos, no intuito de neutralizar, in casu, a disseminação do novo Coronavirus. 

     Em relação à extensão dessa competência, vale mencionar que todos os Poderes da República e os órgãos independentes, tais quais Ministério Público e Tribunal de Contas, nos três níveis federativos (Municípios, Estados, DF e União), estão compreendidos. Estamos a falar da Administração Pública de qualquer Poder.

     Por fim, no tocante à possibilidade, as referidas ações, implementadas através do Poder Executivo, derivam do poder de polícia administrativa que lhe é inerente. Logo, plenamente enquadradas dentro do escopo da legalidade administrativa.  

     Nesse passo, considerando a decretação do estado de calamidade pública por parte dos Governos Federal e Estadual do Rio de Janeiro, passaremos a análise, do ponto de vista constitucional, da implementação desta medida. 

2 – ESTADO DE CALAMIDADE PÚBLICA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.

2.1 Parte material (fundamentos constitucionais):

Vale lembrar que existem cinco passagens (quatro explicitas, isto é, menção direta ao termo calamidade pública, e uma implícita) sobre a decretação do estado de calamidade pública na Constituição Federal de 1988.

 

  • Artigo 21, XVIIICompetência Exclusiva da União para decretar estado de calamidade pública. Não há delegação. União tem todos os atos administrativos concentrados sob sua alçada para formalizar essa situação. A Competência é exclusiva e não privativa. O que isso significa?

 

     As Competências privativas, previstas no artigo 22 da Constituição Federal, podem ser delegadas a outros Estados, por força do que prevê o seu parágrafo único.

     Em suma, a competência é exclusiva da União para planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas. Trata-se de competência eminentemente administrativa da União.

 

 

  • Artigo 34, III – Intervenção federal (fundamento implícito) em razão de comprometimento à ordem pública. Esse comprometimento pode decorrer de fato humano, como uma ação terrorista, por exemplo, ou em razão de fato natural: terremoto, tsunami, pandemia etc. Intervenção federal significa que a União, como regra, não intervirá nos Estados, a exceção das hipóteses descritas no artigo 34 da CFRB/88, sendo certo que no inciso III está prevista a hipótese ora vergastada: “pôr termo a grave comprometimento da ordem pública.” 

 

Merece destaque o fato de que a pandemia do novo Coronavírus não está adstrita somente a um Estado da federação, de maneira que essa medida é inócua face ao cenário atual.

 

 

  • Artigo 136, caput, e parágrafo 1º, II: Estado de Defesa (menos intenso) Estado de Sítio (mais intenso). Restrição à direitos e garantias fundamentais. Por enquanto, podemos observar apenas orientações sanitárias à população, característica da decretação do estado de calamidade pública. A decretação do estado de defesa e do estado de sítio, guardadas as devidas proporções, são medidas mais graves e importam em restrição de direitos e garantias fundamentais. 

 

 

 

  • Artigo 148, I – Instituição de empréstimo compulsório, por parte da União, como espécie de tributo ao particular, para atender a despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública.

 

 

 

  • Artigo 167, parágrafo 3º – A abertura de crédito extraordinário, somente será admitida para atender a despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública.

 

      É importante esclarecer que a pandemia da COVID-19 pode nos levar a três cenários em distintos.

  1. Estágio 1: Intervenção Federal. Não seria possível. Seria justificada acaso a contágio estivesse adstrito a apenas um Estado Federativo, município ou Distrito Federal, sem proporções nacionais. Vide item 2.1.2.

 

      Logo, ultrapassado o estágio 01:

 

  1. Estágio 2: Calamidade Pública. 

      É a medida ora vergastada. O estado de calamidade pública, via de regra, é decretado diante de situação excepcionais, com vistas a obtenção de recursos e a produção de certos efeitos financeiros, tais quais a dispensa de obrigações fiscais e a flexibilização de prazos. Não há restrições à direitos e garantias individuais, mas, apenas, recomendações sanitárias feitas à população.

      É importante esclarecer que a legislação que responsabiliza, do ponto de vista fiscal, os agentes públicos responsáveis pelo manejo de recursos públicos é a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101/2000). Nesse passo, o artigo 65 do referido Diploma informa que na ocorrência de calamidade pública, reconhecida pelo Congresso Nacional, no caso da União, ou pelas Assembléias Legislativas, na hipótese dos Estados e Municípios, enquanto perdurar a situação, duas medidas serão observadas: 

 

  1. A primeira diz respeito à flexibilização dos prazos previstos na legislação. Essa medida visa justamente afastar a responsabilização fiscal do agente que, a princípio, deveria observá-los. 

 

  1. A segunda medida relaciona-se com a dispensa do atingimento dos resultados fiscais com aplicação de receita, cuja inobservância, também, poderia gerar responsabilização fiscal do agente competente. 

 

Vale anotar, ainda, que esse regramento se aplica no caso de estado de defesa e de estado de sitio, decretado na forma da Constituição.  

 

É dizer: a dispensa dessas metas e o seu não alcance não configura responsabilidade fiscal. Daí decorrem dois efeitos: um jurídico e o outro político. Do ponto de vista político, basta lembrar que o último impeachment observado em território nacional teve como fundamento a não observância das metas fiscais, no que concerne, especificamente, ao manejo de receita pública. Por isso que diante do cenário atual, o Governo Federal decretou estado de calamidade, a fim de se resguardar acerca dos prazos e das metas previstas na LC 101/2000, eis que é flagrante a possibilidade de que os mesmos não sejam alcançados. 

 

  1. Estágio 3: Estado de defesa. 

Se a situação se tornar mais grave, isto é, se a pandemia não puder ser controlada dentro dos próximos meses, o Presidente da República poderá decretar estado de defesa, com arrimo no artigo 136, caput, e parágrafo 1º da Constituição. É importante lembrar que: (i) desde a promulgação da Constituição de 1988, nenhum governante decretou estado de defesa ou de sítio; (ii) a regra da Constituição de 1937 era o estado de defesa permanente. 

E como seria materializado esse estado de defesa? A constituição o reserva à decreto legislativo. Vale destacar que a Constituição possui quatro grandes artigos sobre normatizações

O artigo 48 exige para o exercício da competência legislativa das matérias ali tratadas a forma de lei (regular processo legislativo federal) haja vista a sanção exigida do Presidente da República. Não seria o caso, eis que o rol do referido dispositivo não prevê a hipótese em analise, isto é, decretação do estado de defesa ou de sítio.

O artigo 49 relaciona as competências políticas do Congresso Nacional, dentre as quais a de aprovar o estado de defesa e a intervenção federal, autorizar o estado de sítio, ou suspender qualquer uma dessas medidas. Essa, portanto, seria a forma legislativa adequada à hipótese. Não seria situação de Lei, pois como visto acima, para além de a referida medida não constar no rol do artigo 48 da CF, é certo que a referida medida dispensa sanção, de maneira que o Poder Legislativo não produz decreto sancionável. O Congresso Nacional, no que se refere à competência legislativa constante do artigo 49 da CF, poderia atuar de duas formas: 

  1. Ex-officio, através de uma das Casas Legislativas, ou; 

 

  1. Mediante provocação. Não foi o que ocorreu. O Poder Executivo Federal, no Brasil, tomou essa iniciativa, MEDIANTE PROVOCAÇÃO ao Congresso, através mensagem nº 93/2020. É dizer: o Chefe do Executivo instou o Congresso a se manifestar sobre esse panorama. A Câmara, portanto, deflagrou projeto de Decreto Legislativo nº 88/2020, materializando essa questão. Agora, resta ao Senado aprovar. Vale mencionar que é possível a votação remota, por internet, do ponto de vista regimental. O Congresso, portanto, por sua mesa, promulgará, acaso aprovado, o Decreto.  

Artigo 51 e 52 – resoluções privativas das Casas Legislativas. Não do Congresso. Para além de nos referidos artigos não constarem a possibilidade de decretação unilateral pelas casas do estado de defesa ou de sítio.